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A farsa dos atrasados do Enem no palco da mídia pública

  • 04/11/2015 18h50
  • Joseti Marques
  • Joseti Marques

O Exame Nacional do Ensino Médio-Enem 2015, ocorrido nos dias 24 e 25 de outubro, serviu de enredo para uma farsa comparável às do Teatro Profano da idade média francesa, em que os fatos do cotidiano eram  encenados de forma cômica e grotesca, como uma forma de oposição ao chamado Teatro Sacro e suas representações das moralidades e mistérios da fé cristã. Sem as intenções críticas comuns às comédias e sátiras, aos farsantes bastava fazer rir. Farsa é um gênero que as enciclopédias digitais descrevem como paródia de coisas sérias, centrada em fatos da vida real, sem compromisso com um roteiro ou a clássica “moral da história”. As apresentações do Teatro Profano eram episódicas, relacionadas a contextos imediatos, e em geral aconteciam em feiras livres e praças públicas.

As semelhanças entre a repercussão da cena dos falsos atrasados e o espetáculo das farsas do século XII podem ir um pouco além, se pensarmos a mídia como uma espécie de praça pública ampliada, em que os debates são convertidos em show, ultrapassando o lugar de mediação e acesso ao debate público, impondo seus próprios valores, moralidades e mitos. Perante essa esfera pública ampliada, tudo o que fere a norma desconcerta, porque aí só se permite a identificação.

E no caso da “farsa dos atrasados do Enem”, o que os “farsantes” fizeram não foi muito diferente do que faziam os saltimbancos: sem compromisso com modelos, ridicularizaram os costumes do que chamam de “grande circo midiático”.  Chaplin dizia, ao explicar suas hilariantes quedas, que o que faz rir não é o tropeço, mas o esforço daquele que tropeça para recuperar a dignidade.

Cada veículo a seu modo tratou de restaurar a dignidade e a credibilidade diante do riso da plateia. Na mídia pública, o constrangimento não foi menor. Na Agência Brasil, a reportagem sobre os atrasados do Enem, que pode ser lida aqui, conta em detalhes o drama representado pelos “farsantes”. Ao final da mesma matéria, um texto informa que os rapazes “simularam ser candidatos que tinham se atrasado para o exame, quando nem candidatos são”. E encaminha o leitor para o link da matéria que “relata a descoberta da farsa”.  Essa matéria, publicada dois dias depois, às 18h12 do dia 26/10, não relata a descoberta de uma farsa, como promete o texto, mas descreve o que está no vídeo postado no Facebook, no mesmo dia da encenação, pelo coletivo de midiativistas chamado Mariachi – este sim revelando a farsa, como atores que se curvam diante do público após o grand finale.

Nessa segunda matéria, o que chama a atenção é o recurso utilizado pela Agência Brasil para restaurar-se diante de seus leitores. Não buscou falar com a outra parte da história, os midiativistas que dizem combater o “grande circo midiático”,  acusado por eles de desrespeitar as pessoas ao esperar por seus tropeços para torná-los públicos. O que teriam esses jovens a dizer para e sobre a mídia pública, que também se anuncia contra a espetacularização dos fatos e que, afinal, também serviu de palco para a farsa? Não se pode ignorar a realidade que hoje teima em não se alinhar aos critérios jornalísticos consagrados – é preciso dialogar com essa realidade, antes de enquadrá-la.

No entanto, mesmo tendo ignorado essas vozes, a agência recorreu à declaração de um jornalista de veículo digital cujo lema é “Uma trincheira na luta contra a ditadura midiática”, e que tem como segundo crédito um reconhecido centro de estudos de mídia alternativa. Ao fazer isso, a Agência Brasil se colocou em uma posição de ambiguidade: chamando uma voz autorizada para criticar a mídia convencional pela valorização do espetáculo em detrimento de temas importantes - um erro que afinal também cometeu e ao qual não se refere - acaba concedendo uma tímida meia razão aos midiativistas, que assumem o mesmo discurso.  Diante disso, o erro de ter noticiado uma farsa torna-se irrelevante. Em seguida, na frase que introduz um segundo comentário do entrevistado, os "farsantes" são categorizados:

Altamiro ressaltou que, pelo fato de já ser conhecido o sensacionalismo em torno do tema, a mídia acaba sendo usada como holofote por pessoas que querem aparecer”.

Mesmo que, na frase, o juízo de valor seja atribuído ao entrevistado, optar por colocá-la em evidência constitui-se em uma forma de anuência à declaração, ainda mais quando o comentário que vem a seguir mostra-se totalmente fora do contexto da pauta, mal chegando a convergir para o que a frase de introdução indica:

Nós estamos vivendo uma fase no Brasil onde delator vira herói, onde bandido vira herói, onde documentos são repassados de forma seletiva para criar sensacionalismo. Mas estamos vivendo uma fase onde pessoas tentam também aparecer com base nessa onda pessimista. Infelizmente, a mídia acaba nutrindo esse tipo de sentimento. Às vezes, por objetivos políticos, ela [a mídia] acaba tendo uma postura que é contra o Brasil, o que é lamentável”.

Na tentativa de corrigir um simples tropeço e proteger a credibilidade, a Agência Brasil tropeçou de novo, assumindo uma posição conservadora em um tempo que reclama o fim do conservadorismo.

O PÚBLICO NA OUVIDORIA

Ainda sobre o Enem

Abgail Mattos, do Rio de Janeiro, fez uma reclamação muito enfática sobre uma das reportagens da  Agência Brasil na cobertura do Enem. Reproduzimos a íntegra da comunicação entre a leitora e a Superintendência Executiva de Agências e Conteúdo Digital para que mais leitores possam ter acesso não apenas à opinião de Abigail, mas também ao conjunto de reportagens feitas pelos veículos da EBC, a respeito da polêmica em torno das questões do Enem sobre feminismo e o direito das mulheres. Os links para as matérias estão todos ao final do texto:

“Recebi na minha timeline a matéria da EBC "Estudantes saem da Uerj avaliando como fácil prova do Enem", que parecia impecável, quando percebi um viés quase no fim do texto. O repórter, um hômi, e o editor, hômi também, entrevistaram uma "orientadora pedagógica" e uma estudante, avaliando a prova como "tendenciosa".  As duas criticavam, na reportagem, uma das questões do Enem que citava a filósofa Simone Beauvoir. Compreendendo a busca pela pluralidade que levou os jornalistas a incluírem a opinião das duas no texto, pergunto: por que a EBC não entrevistou outras pessoas, como historiadores e estudantes, que receberam com naturalidade a questão da prova – que trata de um FATO HISTÓRICO apenas? A matéria ainda tem um trecho que diz: "Para a estudante de Comunicação, ao abordar questões envolvendo gênero, o exame iniciou uma série de ações afirmativas que inevitavelmente levavam a respostas direcionadas." Ou seja, na mesma semana que se noticia a tentativa de impedir o aborto em casos de estupro, falar sobre movimento de mulheres, "questão de gênero", segundo a EBC, é ser tendencioso? Que contradição! Tendenciosa e direcionada é a matéria de vocês, sem nenhum contraponto em um contexto social que estamos vivendo agora, com recuos nos direitos das mulheres. Acho melhor que treinem suas equipes. Estamos no século 21 e vamos falar sobre direito das mulheres e feminismo, sim."

Resposta da Superintendência Executiva de Agências e Conteúdo Digital:

“Cara leitora
Agradecemos o seu comentário. No entanto, esta não foi a única matéria que fizemos sobre o tema. Para além da matéria citada, a questão que se referia à Simone de Beauvoir, o tema da redação, que foi a persistência da violência contra a mulher, e a presença do feminismo no exame, bem como sua repercussão em redes sociais, foram abordados em diversas matérias da EBC e inclusive no programa Caiu no Enem, que foi ao ar no Portal EBC, na Rádio MEC (AM e FM, Rio e Brasília) e na Rádio Nacional (de Brasília, da Amazônia, do Alto Solimões)”.

Seguem os links:

Questão sobre feminismo com citação de Simone de Beauvoir foi surpresa, diz professor
Feminismo, meio ambiente e globalização marcam o primeiro dia do Enem
Com redação sobre violência contra a mulher, Enem 2015 é considerado "feminista" nas redes
Caiu no Enem: redação contribuiu para discussão da violência contra a mulher
http://www.ebc.com.br/educacao/2015/10/caiu-no-enem-redacao-contribuiu-para-discussao-da-violencia-contra-mulher

Além disso, em redes sociais, o assunto foi abordado em diversos posts, com bastante repercussão:

Questão de Simone de Beauvoir no Enem:

Vídeo com comentário do professor de sociologia que participou do programa Caiu no Enem:

https://www.facebook.com/ebcnarede/videos/895594207204037/

Matéria dos assuntos abordados no primeiro dia de prova:

https://www.facebook.com/ebcnarede/posts/895398887223569

Até a próxima!

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